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MINISTÉRIO PÚBLICO E PROTEÇÃO JURÍDICA DOS ANIMAIS
 

LAERTE FERNANDO LEVAI

1. O PARADIGMA DA CRUELDADE

Desde que o Homosapiens apareceu sobre a face da Terra, em tempos imemoriais, a idéia dedomínio ultrapassou aquilo que seria apenas a luta pela própria sobrevivência..Após a Idade da Pedra e o período Neolítico (por volta de 10.000 a C.), acivilização humana aprimorou suas técnicas de agricultura e de domesticaranimais, além de permitir a organização social, a crença no sobrenatural, e,posteriormente, a formação do Estado. O uso de metais como o ferro e o cobre, apar disso, possibilitou ao homem dedicar-se às guerras de conquista, em épocaconcomitante ao surgimento do comércio e da escrita. Assim, valendo-se de suacapacidade de raciocínio e discernimento, o homem foi alcançando a hegemonia doplaneta, ainda que não compreendesse os fenômenos físicos, químicos ebiológicos responsáveis pela existência. O temor ao desconhecido e o culto aosdeuses tornaram-se freqüentes entre os civilizações primitivas, dada a impossibilidadede se conceber a origem e o destino dos seres vivos. A partir daí, quando ohomem se curvou ao deuses do Olimpo e aos santos das Escrituras, a concepção demundo reverteu aos mitos e à imagem e semelhança do Criador, de forma aprivilegiar a espécie humana em detrimento às demais criaturas. Exceção feitaao antigo Egito e à Indía, onde alguns animais eram considerados sagrados - oboi, o gato, o crocodilo, o chacal e a vaca - o vida dos bichos, naantigüidade, era estigmatizada pelo martírio. Os animais, fossem elesselvagens, domésticos ou domesticados, serviam para a alimentação humana, paraa diversão pública, para o transporte e para a labuta no campo. Uma posturaque, a rigor, ganhou impulso com o advento da doutrina judaico-cristã, cujosreflexos fixaram raízes profundas em quase todos os recantos do mundo. Oshebreus, notabilizados por sua vocação religiosa, distinguiram-se bastante nodireito, na literatura e na filosofia, tanto que o Antigo Testamento contribuiudecisivamente à formação de uma ética cristã . Verifica-se que o Eclesiastestrazia em seus fundamentos, dentre outros postulados, o mecanicismo da vida.Inegável que essa doutrina, pregando a submissão de todas as criaturas ao jugodo homem, influenciou a civilização ocidental sobretudo pelo cristianismo. ABíblia, traduzida para mais de mil idiomas diferentes, prega em seus dogmas queos animais existem para servir ao homem. Partindo dessa premissa chega-se àconclusão de que Deus outorgou à humanidade o poder de subjugar, em prol de seuspróprios interesses, as demais criaturas vivas. Daí porque a relação entrehomens e animais - ao longo dos tempos - sempre esteve marcada pelo signo dopoder e da exploração.

A culturafilosófica surgida na Grécia conduziu o homem, aos poucos, ao centro douniverso, permitindo o surgimento do antropocentrismo Esta doutrina há séculosincorporada na civilização ocidental vem servindo, ainda hoje, para justificara postura racionalista e utilitária que proclama a superioridade humana sobreas demais criaturas. Sócrates, filósofo das essências e das definições,inaugurou essa nova fase do pensamento humano com a máxima 'Conhece-te ati mesmo', frase que trazia em si o germe do individualismo. A teoriageocêntrica de Aristóteles, por sua vez, foi acolhida por teólogos medievais aponto de ser incorporado à cultura da época e transmitida a inúmeras outrasgerações de pensadores, até que o astrônomo Copérnico e o físico Galileudescobrissem que o Sol, e não a Terra, era o centro do universo. Reforçada maistarde pelo método científico de Descartes , que no século XVII considerava osanimais meros autômatos incapazes de raciocinar ou de sentir dor, essa correntede pensamento tem sido a causa principal da crise de valores em que se vêinserida a humanidade. Ainda que seu contemporâneo Voltaire tenha feito acrítica à opressão, à intolerância e ao fanatismo vigentes em sua época, aponto do afirmar que se trata de uma enorme pobreza de espírito dizer que osanimais são máquinas privadas de sentimento, de se notar que a crueldadegratuita não raras vezes parece imanente à própria natureza humana. Que o digamas arenas e os templos dedicados ao martírio e à dor. Que o digam ossacrifícios de vida cometidos em nome da religião. Que o digam os genocídiospraticados pela espécie que se pretende racional e inteligente. A antiga moralestóica, de inspiração naturalista, partia do principio de que o mundo não égovernado por um Deus, e sim pela Natureza, mãe de todas as coisas. Mas essamentalidade relacionada à existência de um direito natural comum a homens eanimais, não foi aceita pelos jurisconsultos romanos, os quais atribuíram anoção de direito apenas ao ser humano. Desse modo, o estoicismo - a exemplo dafilosofia hindu - onde se busca a harmonia cósmica entre todas as criaturas,remanesce em um patamar quase inatingível ao modus vivendi ocidental.Incorrendo no erro de Descartes, notáveis pensadores dos tempos modernospassaram difundir o racionalismo na ciência, admitindo como legítima, assim, amanipulação da natureza pelo homem. O mais triste exemplo disso foi odesenvolvimento da vivissecção, onde animais vivos sofreram e ainda sofrem -naprópria pele - terríveis padecimentos e dores atrozes em prol daquela que setornou a mais poderosa deusa de todos os tempos: a deusa-ciência.

A noção deética, portanto, firmou-se com base nos próprios interesses humanos, e, nocorrer dos séculos, permitiu que centenas de espécies de animais - silvestres,domésticas, domesticadas, exóticas ou migratórias, do meio terrestre ou aquático­fossem aniquiladas ou subjugadas pela espécie dominante. Desde que ospreceitos bíblicos apresentaram o homem como criatura moldada à imagem esemelhança de Deus (Gênesis, I, 27), os animais, tido como seres inferioresporque desprovidos de intelecto e livre arbítrio, têm sofrido, em larga escala,o estigma da servidão. Eternos escravos, caça ou alimento, máquinas de diversãoou de experimento, os bichos procuram sobreviver em um espaço cada vez maisocupado pelo homo sapiens. Mas como conceber a ética fora da perspectivaunilateral em que ela se apresentou? Keith Thomas, professor de história naUniversidade de Oxford, escreveu que o principal propósito dos pensadores doinício do período moderno, ao estabelecer uma sólida linha divisória entre o homeme os animais, era o de justificar a caça, a domesticação, o hábito de comercarne, a vivissecção e o extermínio sistemático de animais tidos como nocivosou predadores. O homem, que já foi classificado como animal político(Aristóteles), animal que ri (Thomas Willis), animal que fabrica seusutensílios (Benjamin Franklin), animal religioso (Edmundo Burke) e animalque cozinha (James Boswel, antecipando Lévi-Strauss), é, provavelmente, umadas poucas espécies que trazem em si uma natural propensão ao sadismo. E que emnome desse sentimento desvirtuado vem exercendo, nos quatro cantos do mundo,condutas altamente reprováveis do ponto de vista moral. Não apenas nos temposatuais, mas em todas as épocas a crueldade contra animais sempre se fezpresente no espírito humano.

A touradaespanhola, por exemplo, legitimou a barbárie com base em argumentossociológicos relacionados à tradição e aos costumes do povo ibérico. Também acaça, outrora muito apreciada pela nobreza -a pretexto de se constituir ementretenimento ou esporte - aliou diversão à crueldade, eis que exercida emflagrante desigualdade de forças e, não raras vezes, com métodos repugnantes.Igualmente abjeto o açulamento de ursos que, presos a uma corrente, eramatacados e dilacerados por cães ferozes. Na Inglaterra vitoriana havia,anualmente, corridas de touros onde o animal, com as orelhas cortadas, a caudareduzida a um coto, o corpo lambuzado de sabão e o focinho inchado de tantapimenta, era solto para se ver quem conseguia agarrá-lo em um vale-tudo degeneralizado. Texugos, macacos, mulas e mesmo cavalos também podiam seraçulados. Havia até mesmo cartilhas de crueldade, como a Gentleman´sRecreation (Recreação do Fidalgo, l674), ao sugerir a captura de um cervoque, depois de ter decepada uma de suas patas, era solto para ser perseguido edevorado, ainda vivo, por pequenos sabujos. Já a pesca envolvia, muitas vezes,o emprego de iscas vivas, não apenas peixes pequenos como também rãs. Outroexperimento comum era atravessar uma agulha na cabeça da galinha para verificarquanto tempo e ave sobreviveria à experiência. Práticas essas que, conformeasseverou aquele ilustre professor inglês, eram assimiladas pelos alunos ou,pior ainda, realizadas na própria escola, como no ritual público do apedrejamentode galos. E que refletiam os modelos do mundo adulto. Nas ruas, da mesma forma,as crianças se divertiam caçando esquilos, capturando passarinhos paraarrancar-lhes os olhos, amarrando garrafas ou latas às caudas dos cães,derrubando gatos de grande altura para ver se aterrisavam em pé, cortando rabosde porcos como troféus e inflamando corpos de rãs vivas assoprando nelas comcanudos de palha.

Durante oséculo XVIII, apogeu do Iluminismo, o homem impôs ainda mais sua supremaciasobre as demais criaturas do planeta . As atividades relacionadas àexperimentação animal ganhavam vulto na Europa, incentivadas pelo rigor domecanicismo científico ávido em buscar soluções imediatas para o mistério docorpo humano e a cura das doenças. O fisiologista francês Claude Bernard, apartir de 1865, difundiu a idéia da vivissecção - dissecação de animais vivos,anestesiados ou não, para estudos fisiológicos -como única forma confiável defazer ciência. Realizando experiências cruentas em medievais aparelhos decontenção, Bernard submeteu centenas de animais a procedimentos macabros, sob ajustificativa de simplesmente estudá-los. Dentre seus seguidores podemosrelacionar o russo Ivan Pavlov, cujo clássico experimento consistia emseccionar o pescoço de um cachorro para que o alimento ingerido pelo animal nãochegasse ao estômago, concluindo assim que a salivação, por si só, provocava asecreção de sucos gástricos. Outro vivissector, Ziegler, imobilizava macacospata dissecá-los vivos, observando-lhes as funções cerebrais. Blalock, por suavez, usava uma prensa para arrebentar os músculos dos cães sem o risco,contudo, de quebrar-lhes os ossos. Já Collison implantava canudos nos crânioescalpelado de gatos ou macacos, com eletrodos ligados ao cérebro, visando arealização de experiências neurológicas. A prática da experimentação animal nãose restringiu à época de Claude Bernard, pelo contrário, atravessou o séculoXIX e avançou pela era contemporânea em progressão geométrica, realizando-seora em laboratórios, ora na clandestinidade, de modo a provocar a cada ano - noaltar científico - a morte de milhões de animais.

Em solobrasileiro, da mesma forma, a história dos animais não é menos triste.Costuma-se dizer que o Descobrimento, formalizado em 1500, representou o marco divisórioque legitimou a barbárie contra a Natureza. Isso porque, a partir dacolonização portuguesa e das investidas bandeirantes sertão adentro, cada vezmais foi sendo reduzido o espaço natural até então pertencente aos bichos. Emmenos de quinhentos anos cerca de 92% da Mata Atlântica desapareceu, assim comoas florestas naturais do interior do País e significativa parte da Amazônia.Isso contribuiu, certamente, para a destruição de habitats e de inúmerosecossistemas sequer conhecidos pelo homem, de modo a submeter algumas dezenasde espécies animais ao drama da extinção. A respeito desse assunto observouRenato Guimarães Júnior, com peculiar brilhantismo, que a retrospectiva doDireito Ecológico, no Brasil, revela 'uma impiedosa tragédia jurídico-legislativado Homem contra a Natureza'. Tanto que, mesmo após a Independência, osdiplomas legais do Império não tinham qualquer preocupação em zelar pelas aves,peixes e matas, ainda abundantes no território nacional. As espécies animais,segundo terminologia inserida nas Ordenações do Reino, foram reduzidas a umaúnica expressão: 'semoventes de qualquer valor'. Essaconcepção estritamente privatista, que desprezava as características biológicasdos seres vivos e negava-lhes qualquer tipo de compaixão, parece ter seincorporado à mentalidade do legislador pátrio. Tanto isso é verdade que, aindahoje, nosso Código Civil considera os animais como 'bens móveissuscetíveis de movimento próprio' (artigo 47), 'coisas sem donosujeitas à apropriação' (artigo 593) ou, simplesmente, 'caça'(artigos 596 a 598). E, em termo penais, os bichos porventura lesionados nãofiguram como sujeitos passivos da ação humana, mas como objetos materiais dodelito. Nessas hipóteses a vítima, segundo a dogmática penal brasileira, é acoletividade.

Evidente que,no contexto histórico tupiniquim, nossos animais passaram a despertarinteresses econômicos múltiplos, como se pode constatar pela própria certidãode nascimento do Brasil, a famosa Carta de Caminha, autêntica crônica da morteanunciada: 'Esta terra, Senhor, me parece tamanha, toda cheia degrandes arvoredos. Nela até agora não pudemos saber se haja ouro, nem prata,nem nenhuma cousa de metal, de ferro; nem lho vimos. A terra, porém, é de muitobons ares. Águas são muitas, infindas. Mas o melhor fruto que se pode fazer meparece que será salvar esta gente'. Na época colonial, aliás, eracomum a captura de aves e macacos para 'exportação', assim como acaça de onça, cuja pele despertava cobiça no mercado europeu. As estradas ebandeiras, que permitiram o surgimento de nossos primeiros povoados e vilasocasionaram, em contrapartida, o êxodo dos animais silvestres diante daexpansão urbana ou, então, um maior contingente de animais domesticados.Curioso que o colonizador, quando não afugentava ou matava os bichos, decidiamantê-los sob seu jugo, ora para obter proveito próprio (animais domésticosdestinados à alimentação ou ao trabalho no campo), ora para se comprazer,consciente ou inconscientemente, diante do sofrimento alheio (pássaros nativospresos em gaiolas). Em suma, uma triste realidade que pode ser sintetizada emapenas duas palavras: servidão e crueldade.

Difícilprecisar a verdadeira dimensão dos tormentos infligidos, dentro e fora doBrasil, aos animais. Porque o homem - apesar de toda sua cultura e tecnologia -é o mais selvagem e perigoso habitante do planeta. O homem que derrubaflorestas e que leva centenas de espécies à extinção. O homem que, na febre dasconquistas, devasta campos sem fim, condenando à morte os legítimos detentoresda terra. Que, movido por interesses mercantilistas, reduz os animais àcondição de escravos, objetos ou matéria-prima. O homem que captura baleias naponta dos arpões. Que massacra a pauladas, no Ártico, filhotes de focas diantedas próprias mães. Que prende feras em armadilhas apenas para exibi-las comotroféus ou transformar suas peles em casados. Que estimula a criação intensivade vacas, porcos e galinhas, submetendo-os a uma vida miserável, para, depoisdo abate, consumir-lhes a carne. O homem que elegeu como esporte e diversãopública eventos eticamente censuráveis, como o tiro ao pombo, a briga de galo,as competições de pesca e a caça amadora, a farra do boi, os rodeios e asvaquejadas. Que, para produzir a macia carne de vitela, confina bezerrosrecém-nascidos em pequenos boxes, matando esses filhotes sem que elestenham dado um único passo ou que tenham visto a luz do sol. O homem quesubmete cavalos e jumentos a trabalhos forçados. Que aprisiona animaissilvestres em zoológicos, autênticas vitrines vivas. Que subverte a naturezados animais utilizados em circos, adestrando-os com métodos rigorosos para querealizem um espetáculo deprimente. Que aprecia uma gastronomia perversa, ondepeixes e moluscos são cozinhados vivos diante de olhares famintos, onde boissão esquartejados em câmaras mortuárias e onde gansos são alimentadosmecanicamente, até a morte, para que produzam o requintado paté de foie gras.Que esmaga, dia após dia, cães e gatos no rubro asfalto de sua consciência. Ohomem que, tido como o mais inteligente das criaturas, é capaz de cometerinimagináveis atrocidades em detrimento da natureza e de seus própriossemelhantes.

Oportuno dizerque, na segunda metade do século XIX, veio a lume uma obra capaz de abalar asestruturas e convicções até então vigentes no pensamento científico. Trata-sede 'A Origem das Espécies', de Charles Darwin, livro que demonstrou aexistência de um milenar processo biológico entre os seres vivos. Oevolucionismo ali proposto e relacionado, diretamente, à tese da seleçãonatural, afrontava os dogmas cristãos referentes à criação do mundo. Em seuúltimo trabalho técnico, 'A expressão das emoções no homem e nosanimais' (1872), Darwin comprova que também os animais têm emoções esentimentos, manifestadas por meio de atitudes, gestos e expressões. Nesseaspecto permite concluir que homens e animais, do ponto de vistaneuro-fisiológico, têm muito em comum, v. g., a capacidade de sentir dor e desofrer. Naquela época o Brasil ainda não se dera conta dessa mudança dementalidade. As vissicitudes históricas de um País que há pouco tempo haviaalcançado a Independência e que, sob regime monárquico, procurava firma-se comoNação no plano econômico, político, cultural e legislativo, não permitiammaiores reflexões acerca do drama vivido pela fauna da terra. Vozes isoladascomeçaram a se erguer em prol de uma causa justa, possibilitando - aos poucos -o convencimento popular de que os atentados contra os animais, quando gratuitosou motivados pela ganância ou pelo sadismo, não mais poderiam ser tolerados. Ojornalista José do Patrocínio, que se empenhou na luta pela abolição daescravatura e pela proclamação da República, foi uma dessas pessoas que secomoveram com o sofrimento dos bichos. Tanto que em seu último artigo, redigidoinstantes antes de morrer, protestara contra a brutalidade humana cometidacontra um animal de tração... De fato, havia chegado o momento do País editarsua primeira lei de proteção aos animais.

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA

As iniciativas visando à tutelajurídica dos animais, no Brasil, sempre enfrentaram grandes interessespolíticos e econômicos. Na época colonial praticamente não havia qualquerdispositivo de caráter preservacionista, até porque, na visão do colonizador, aselva era inimiga do homem. Durante os ciclos do pau-brasil, da cana-de-açúcar,do gado , do ouro e, mais recentemente, do café, a natureza sofreu grandedevastação. Bandeirantes e tropeiros atentavam, sem dó nem piedade, contra aflora e a fauna da terra, imbuídos de um atávico sentimento de hostilidade emrelação às florestas e aos animais. A caça indiscriminada fez praticamentedesaparecer, das matas do Curupira, veados, onças-pintadas, antas e jacutingas.Animais selvagens foram comercializados interna e externamente. Os domésticos,por sua vez, viviam em servidão: vacas para fornecer o leite e a carne; burrospara transporte; bois para tração; cães para vigilância e caça; cavalos paraviagens e combates. Já os pássaros, apanhados aos milhares, tinham como destinoo cativeiro local ou a exportação. Era   o momento declamar contra o mar de insanidade que avançava, desde 1500, sobre  o território brasileiro, até porque a Natureza - animais e florestas - já não conseguiaresistir à avassaladora política mercantilista que se instalara no Brasil. ACoroa, interessada em manter o domínio da colônia, resistiu energicamente àeclosão dos movimentos de independência. Todavia, a emancipação política-consumada em 1822 - possibilitou ao Brasil organizar-se como Nação, elaborando,enfim, suas próprias leis. Não obstante a outorga da Constituição do Império(1824) e o surgimento do Código Criminal (1830), a situação dos animais praticamente não se alterou durante a Monarquia, exceção feita ao Código de Posturas do Município de São Paulo, de 6 de outubro de 1886, cujo artigo 220trazia em seu bojo um pioneiro dispositivo legal referente aos bichos: 'É proibido a todo e qualquer cocheiro, condutor de carroça, pipa d´água, etc.,maltratar os animais com castigos bárbaros e imoderados. Esta disposição é igualmente aplicável aos ferradores. Os infratores sofrerão a multa de 10$, de cada vez que se der a infração'. Com o advento da República, em 1890,época em que a carroça era o principal veículo de transporte, muita gente já protestava contra os excessos e castigos impingidos aos animais de tração. O surgimento da União Internacional de Proteção aos Animais (UIPA), em São Paulo,permitiu uma mobilização em torno dessa causa humanitária. Foi nesse tempo,aliás, que também nasceu o Ministério Público, instituição voltada à defesa da sociedade e imprescindível à garantia do regime democrático. A evolução doParquet, durante o século XX, não se limitou ao seu tradicional papel de órgão acusador público, mas ao resguardo dos interesses individuais indisponíveis e,mais tarde, dos chamados interesses difusos e coletivos da sociedade. A proteção jurídica dos animais, que não podia ficar excluído do rol de atribuições do Ministério Público, foi inserida em dois dispositivos do Decreton. 24.645/34 (medidas tutelares aos animais), expedido no Governo Provisório:Artigo 1o - 'Todos os animais existentes no País são tutelados do Estado'. Artigo par. 3o - 'Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais epelos membros das sociedades protetoras de animais'. Esse antigo diploma legal, que tinha sido revogado pelo Decreto n. 11, de 18.01.91,ressuscitou por força do Decreto n. 761, de 19.2.93, em típico fenômeno derepristinação, servindo hoje como autêntica fonte do Direito.

O legisladorbrasileiro, antes da Carta de 1988, nunca teve qualquer intenção em proteger oambiente como um todo, fazendo-o sempre de maneira dispersa e com objetivos,acima de tudo, econômicos. É o que se verifica das Constituições republicanasde 1934, 1937, 1946 e 1967 , que, demonstrando pretensa preocupação com os'recursos naturais' do País, atribuíram competência à União paralegislar sobre florestas, águas, riquezas do subsolo, caça e pesca. Umapostura mais patrimonial do que ecológica propriamente dita, posto que anatureza , nela incluída a fauna, era tratada como recuso natural ou bemsuscetível de valor monetário. Nota-se, a propósito, que o primeiro diplomalegislativo brasileiro referente aos animais silvestres foi o antigo Código deCaça (1943), cuja essência flagrantemente ofensiva aos bichos foi alterada,anos mais tarde, pela Lei de Proteção à Fauna (1967), o que esboçava umamudança de postura do legislador - pelo menos no sentido terminológico - emrelação aos animais. A verdadeira preocupação com a causa ambiental,manifestada nos anos 60/70 em meio a um cenário mundial impregnado pelofantasma da guerra nuclear, mobilizou os quatro cantos do planeta. Isso fez comque a ONU promovesse a célebre Conferência de Estocolmo, em 1973, proclamando anecessidade das Nações em somar esforços para atingir a um objetivo comum, apreservação da natureza, antes que fosse tarde demais. Até então, no Brasil, asmatas eram derrubadas pela indústria e inúmeras espécies animais haviam sidocondenadas à extinção. Sem qualquer critério ou planejamento urbano, vilarejose cidades surgiam no lugar das florestas, rios se tornam depositários depoluentes, estradas riscavam o País sem prévio estudo de impacto ambiental,enquanto que os animais selvagens - perdendo seu habitat natural -quando não conseguiam migrar, eram mortos ou aprisionados Fazia-se imperiosoque o Ministério Público, como instituição autônoma, independente e vocacionadapara a defesa dos interesses gerais da comunidade, assumisse a defesa da faunabrasileira.

Com a evolução de pensamento e doscostumes surgiram no Brasil, no decorrer do século XX, as leis protetivas deanimais. Depois do pioneirismo do citado Decreto-federal 24.645/45, querelacionava, de modo casuístico, as hipóteses de maus tratos (artigo 3o,incisos I a XXXI), surgiu a Lei das Contravenções Penais, em cujo artigo 64 olegislador pátrio fez inserir um dispositivo intitulado 'Crueldade ContraAnimais' conduta essa transformada em crime pela Lei n. 9.605/98. Dentreas leis federais relacionadas, direta ou indiretamente, à tutela da fauna,podemos distinguir as seguintes: Lei n. 4.771/65 (Código Florestal), Lei n.5.197/67 (Lei de Proteção à Fauna), Decreto n. 221/67 (Código de Pesca,complementado pela Lei 7.679/88), Lei

n. 6.638/79(Vivissecção), lei n. 7.173/83 (Jardins Zoológicos), Lei n. 8.974/95(Engenharia Genética), além, é claro, das importantíssimas Leis n. 6.938/81(Política Nacional do Meio Ambiente) e 7.347/85 (Ação Civil Pública), que consagrarama vocação ambiental do Ministério Público face às significativas conquistas queobteve em prol da flora e da fauna brasileiras.

De fato,impossível esquecer dos avanços trazidos pela Lei 6.938/81 que, ao tratar daPolítica Nacional do Meio Ambiente, conferiu ao Ministério Público o papel deguardião da natureza (art. 14, § 1o), expectativa essa alcançada, em plenitude,com a edição da Lei 7.347/85 (Ação Civil Pública), a qual forneceu àInstituição os instrumentos necessários ao exercício de seu nobre mister. NaConstituição de 1988, enfim, o Ministério Público passou a ser considerado 'instituiçãopermanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesada ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuaisindisponíveis'. A partir da década de 80, portanto, nosso legisladordeferiu ao MP estadual ou federal a capacidade de postular em defesa do meioambiente, seja na esfera judicial mediante ação civil pública ou mesmoadministrativa, com o procedimento do inquérito civil, além da possibilidade decelebrar acordos extrajudiciais em matéria ambiental, com força de títuloexecutivo, mediante Termos de Ajustamento de Conduta, ações essas de cunhoprocessual, preventivo, pedagógico e/ou social. Não se pode desvincular oParquet do caráter social de sua atuação, até porque a tutela do ambiente éassunto de interesse de toda a coletividade.

Ao MinistérioPúblico, 'instituição permanente, essencial à função jurisdicional doEstado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dosinteresses sociais e individuais indisponíveis' (art. 127 da CF), olegislador constitucional conferiu, por excelência, a defesa do meio ambiente.A ação civil pública - que normalmente visa a uma obrigação de fazer ou nãofazer, ou, então, a uma condenação pecuniária ou indenizatória - não éexclusiva do Ministério Público, podendo ser intentada pelos órgãos ambientaise pelas entidades de defesa do meio ambiente, desde que legalmenteconstituídas. Na hipóteses de ações que se relacionam à fauna, uma vez julgadasprocedentes, o pagamento de eventual indenização reverterá em prol de um fundoespecífico para a recuperação de bens lesados. Em sede processual civil apretensão imediata pode ser obtida através de medida cautelar - normalmente emsede de liminar - sempre que houver fumus bonis juris e periculum in mora.À disposição do cidadão, para que se possa pleitear a anulação ou declaração denulidade de ato lesivo ao meio ambiente, existe a Ação Popular (Lei n.4.717/65). Trata-se de instrumento igualmente hábil à tutela da fauna, emborapouco utilizado na prática. Em sendo ajuizada ação popular o Ministério Públicoserá interveniente obrigatório (custos legis), com legitimidade paraassumir a titularidade da demanda na hipótese de desistência do autor-cidadão.

Sabe-se que noâmbito penal, mais precisamente nas modalidades típicas contempladas na Lei dosCrimes Ambientais, o titular exclusivo da ação é o Ministério Público. Asocorrências envolvendo animais silvestres nativos (aqueles que vivem livres emseu meio natural, como a arara, a onça, o mico-leão-dourado, o boto, o tucano,etc) e/ou exóticos (originários de outros países, como o leão, o elefante, otigre, a iguana, etc). mormente vítimas de caça ou de contrabando, assim comoas fiscalizações sobre circos, zoológicos e criadouros, competem ao Ibama e àPolícia Florestal, sendo em regra apreciadas pela Justiça Federal (onde atua aProcuradoria da República). Na hipótese de práticas cruéis (maus-tratos ouabuso) contra os animais, independente de sua condição ou origem, odestinatário da notitia criminis será o Ministério Público Estadual. Emse tratando de atentados contra animais domésticos (aqueles que vivem nadependência do homem),cabe ao Promotor, após analisar o Termo Circunstanciado,a representação do denunciante ou então as pelas de informação, formar sua opiniodelicti. A Polícia, no entanto, deve agir sempre que solicitada paraatender ocorrências envolvendo crimes ambientais, mesmo aqueles referentes aanimais silvestres, domésticos ou migratórios, porque a fauna é hojeconsiderada bem ambiental de uso comum do povo (art. 225 caput da CF).

Dispõe oartigo 225 § 1o, VII, da Constituição federal de 1988, que ao Poder Públicoincumbe 'proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, aspráticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção dasespécies ou submetam animais à crueldade'. A lei federal n. 9.605/98,inspirada nesse primoroso princípio constitucional, estendeu seu alcanceprotecionista à fauna em si, sem distinções, abrangendo os animais silvestres,domésticos ou domesticados, nativos, exóticos ou migratórios, preocupando-setambém com a incolumidade dos ovos, larvas e dos ninhos ou criadouros naturaisdas espécies. No capítulo referente aos Crimes Contra a Fauna, inserido na LeiAmbiental, podemos distinguir o artigo 29 ('Matar perseguir, caçar,apanhar, utilizar espécies da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória,sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou emdesacordo com a obtida), o artigo 32 ('Praticar ato de abuso, maus-tratos,ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ouexóticos), o artigo 33('Provocar, pela emissão de efluentes ou carreamentode materiais, o perecimento de espécies da fauna aquática existente em rios,lagos, açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras) e o artigo 35('Pescar, mediante a utilização de explosivos ou substâncias que, em contatocom a água, produzem efeito semelhante; substâncias tóxicas, ou outro meioproibido pela autoridade competente'). Os cetáceos (baleias, botos egolfinhos), propositadamente, não foram incluídos no referido diploma ecológicoface à vigência da Lei federal n. 7.643/87, que trata do assunto e estabelecesanções penais bem mais rigorosas àqueles que molestarem ou pescarem essesmamíferos aquáticos.

Ressalte-se,aliás, a existência de inúmeros tratados e convenções internacionais visando àproteção da fauna, vários deles subscritos pelo Brasil. Dentre essescompromissos ambientais em vigor podemos distinguir: Convenção Internacionalpara proteção dos Pássaros (Paris, 18/10/50), Convenção Internacional da Pescada Baleia (Washington, 2/10/46), Convenção Sobre as Zonas Úmidas de ImportânciaInternacional para proteção dos Animais e Pássaros Áquáticos e Terrestres(Ramsar, 2/2/71), Convenção Sobre o Comércio Internacional de Espécies da Florae da Fauna Selvagem em Perigo de Extinção (Washington, 3/3/73), Declaração Universaldos Direitos dos Animais (Bruxelas, 27/1//79), Convenção sobre Conservação dasEspécies Migratórias Pertencentes à Fauna Selvagem (Bonn, 23/6/79) e a célebreConvenção sobre a Biodiversidade (Rio de Janeiro, 5/6/92), onde 156 paísesparticipantes do 'Encontro da Terra' subscreveram a 'Convençãosobre a Diversidade Biológica', reconhecendo a importância dabiodiversidade para a evolução e manutenção dos sistemas necessários à vida dabiosfera, em benefício de um mundo melhor. A possibilidade de cooperaçãointernacional para a preservação do meio ambiente, aliás, foi habilmenteinserida no capítulo VII da Lei Ambiental, o que permite ao Brasil viabilizar aconsecução de seus fins ecológicos e garantir reciprocidade no intercâmbio comoutros países. Isso facilitou a ação da Interpol brasileira no Exterior, postoque, nos últimos anos, foi possível a apreensão de diversos papagaios, araras,águas e tucanos levados por traficantes ao mercado estrangeiro, onde o comércioespúrio de animais silvestres movimenta, anualmente, a espantosa cifra de US$10 bilhões. Apesar de tudo cerca de 200 animais, no Brasil, ainda correm perigode extinção. Dentre os bichos assim classificados pelo Ibama (Portaria n.1.522/89), podemos mencionar, a título exemplificativo, os seguintes:mico-leão-dourado, jaguatirica, suçuarana, lontra, ariranha, tatu-canastra,peixe-boi, baleia jubarte, veado-campeiro, macuco, pato-mergulhão, gavião-real,jacutinga, papagaio-da-serra, sabiá-pimenta, anambezinho, tartaruga-verde,jacaré-do-papo­amarelo, etc. Já no Estado de São Paulo as espécies em riscoestão relacionadas no Decreto n. 42.838, de 4.2.98, que inclui em seu bojo 191aves, 66 mamíferos, 66 répteis, 26 peixes de água-doce e 33 borboletas.

De rigor, apropósito do tema, uma breve análise da questão relacionada à atribuição ecompetência das autoridades nas hipótese de atentados contra a fauna . Segundoproclamava a Súmula 91 do Superior Tribunal de Justiça, 'compete à Justiçafederal processar e julgar os crimes contra a fauna'. O artigo 1o da Lei5.197/67, de sua parte, considera os animais silvestres como propriedade daUnião federal. Todavia, o espírito no nosso moderno ordenamento jurídicoambiental sugere que a competência para o processo e para julgamento dos crimescontra a fauna fique afeita, em inúmeras hipóteses, à Justiça Estadual. Issoporque a tutela dos animais é exercida com maior facilidade no forum reisitae - seja na colheita de provas, seja no próprio ajuizamento das açõespenais - pelo promotor de Justiça que atua junto à comarca atingida pelo dano.Não foi por acaso que o legislador ambiental inseriu as condutas delituosasenvolvendo a fauna no capítulo dos Crimes Contra o Meio Ambiente, cuja defesa édo interesse do Estado-membro, inclusive. Ora, a fauna silvestre não seencontra textualmente inserida dentre os bens da União relacionados no artigo20 da CF. Ainda que assim não fosse, a competência para proteger o meioambiente e preservar a fauna é comum à três esferas de poder - União, estados eMunicípios (art. 23, VI e VII da CF) - afastado o estigma centralizador que,nas Constituições pretéritas, conferia exclusividade à União para legislarsobre caça e pesca, com intuito outro, certamente, que não o ecológico.

Tanto isso eranotório que o Superior Tribunal de Justiça, recentemente, cancelou ­porunanimidade - a Súmula n. 91, de outubro de 1993, que estabelecia ser dacompetência da Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra afauna, uma vez que a Lei n. 9.605/98 possibilita à Justiça estadual ojulgamento dos crimes lesivos à natureza. Na esteira desse raciocínio, acompetência da Justiça federal remanesce em situações específicas de atentadoscontra a fauna, a saber: a) quando o crime envolver espécies silvestres ameaçadasde extinção, assim oficialmente reconhecidas, eis que o Brasil é signatário daCites; b)quando a conduta delituosa extravasar os limites de um únicoEstado-membro ou, ainda, as fronteiras do País; c) quando envolver atos decontrabando de animais silvestres, peles e couros de anfíbios ou répteis, parao Exterior; d) quando, em sentido inverso, ocorrer introdução ilegal de espécieexótica no País; e) quando se referir à pesca predatória em mar territorialbrasileiro ou o molestamento intencional de cetáceos; f) quando o danofaunístico se consumar em parques ecológicos, reservas florestais ou áreassujeitas ao domínio eminente da Nação. Nas demais hipóteses, a competência parajulgamento de crimes contra a fauna é, em regra, afeita à Justiça estadual. Notocante aos animais domésticos ou domesticados submetidos a atos de crueldade(abusos, maus-tratos, lesões ou mutilações), essa polêmica inexiste. Acompetência, nesse casos, é da Justiça Estadual, eis que o objeto jurídicotutelado abrange a moral pública e o sentimento de compaixão que se devenutrir, indistintamente, pelas criaturas vivas. Com a vigência da Lein.9.605/98, que conferiu proteção a todos os animais, sem distinções porespécies ou categorias, reforçou-se a tese de que os bichos silvestres nãopertencem única e exclusivamente à União, e sim ao Poder Público de todas asesferas. Daí porque, com o devido respeito às opiniões contrárias, a Súmula 91do STJ estava em flagrante desconformidade à nova ordem jurídica instauradapela atual legislação do meio ambiente, que trata a fauna sob a perspectiva de'bem ambiental da coletividade'.

Para que sepossa facilitar a aplicação da lei sem esbarrar em questões de naturezaprocessual, como na discussão acerca da competência nos crimes contra a fauna,melhor seria a atuação conjunta entre os dois órgãos do Ministério Público, ofederal e o estadual. Estudando esse tema não apenas do ponto-de-vistacriminal, propôs Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, com o brilhantismoque lhe é peculiar, fosse atribuída legitimidade concorrente ao Parquet,de sorte que tanto ao MP federal como ao estadual haveria a possibilidade deintervir, na qualidade de assistente litisconsorcial, na ação proposta pelooutro. Assim, segundo ele, 'a intervenção simultânea de dois órgãos atendeà necessidade de somar forças em defesa do meio ambiente e seria sobtodos os aspectos proveitosa: a conjugação de esforços aumentaria em muito aeficiência da ação do Ministério Público'. Embora o sistema federativobrasileiro discipline a forma de distribuição de competências entre os trêsentes políticos e o Ministério Público esteja dividido em um órgão federal eoutro estadual, com atribuições predeterminadas, não se pode ignorar que, naprática, eventual falta de entrosamento do poder público - em havendoocorrência criminosa contra a fauna - somente prejudicaria o bom andamento daJustiça. Afinal, o Direito está ao lado de quem o realiza e, nessa linha deraciocínio, melhor - ao primeiro momento - a conjugação de esforços entre o MinistérioPúblico, as entidades públicas ligadas ao setor, as associações ambientalistase a população em geral. Até porque, como bem anotou aquele ilustre Procuradorde Justiça, 'a preservação do meio ambiente interessa mais de perto a todaa coletividade do que apenas às entidades políticas'.

3. O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Humilhada eofendida durante mais de quatrocentos anos, a fauna brasileira -em que pese avigência dos diplomas ecológicos ora referendados pela Lei 9.605/98 - aindaenfrenta situações paradoxais. A grande extensão geográfica do País com seusdiferentes fatores sócio-culturais dificultam, por vezes, a atividadefiscalizatória ambiental, ensejando a impunidade dos infratores. Fatos tidoscomo corriqueiros em inúmeras regiões do Brasil - comércio de animaissilvestres, pássaros nativos confinados em gaiolas, castigos imoderados emanimais de tração, maus tratos em bichos domésticos, experimentação cruel noslaboratórios, pescarias com substâncias tóxicas, brigas de galo, farra do boi,etc - constituem tristes amostras de uma realidade que ainda perdura entre nós.É preciso que o Parquet, no âmbito de suas atribuições, faça valer asfunções institucionais que lhe foram deferidas pela própria ConstituiçãoFederal, em benefício da sociedade que representa.

Ao atribuir aoMinistério Público ampla legitimação para a tutela dos interesses difusos ecoletivos - nos quais se insere a fauna - o legislador constituinte de 1988confiou-lhe, em assuntos ecológicos, o nobre posto de 'guardião do meio ambiente'(art. 129, III, CF). Essa escolha, na verdade, veio em reconhecimento aotrabalho que a Instituição já fazia, com êxito, desde a edição das Leis6.938/81 e 7.347/85. Embora a lei dos interesses difusos confira, para apropositura da ação civil pública, legitimidade concorrente a outras pessoasjurídicas (União, Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas,fundações, sociedades de economia mista e associações), foi o MinistérioPúblico, certamente, seu destinatário por excelência. O caráter social dessaatuação, traduzindo os anseios da coletividade e seus valores mais relevantes,fez do Parquet 'instituição permanente e essencial à funçãojurisdicional do Estado' (art. 1o, LOMP).

Para exercer,a contento, a tutela jurídica da fauna, assim considerada bem difuso denatureza ambiental, o Ministério Público tem ao seu alcance dois poderososinstrumentos de defesa ecológica: o inquérito civil e a ação civil pública.Ambos constituem meios eficazes para prevenir ou remediar a ocorrência de um danoà fauna, tanto no plano preservacionista como no plano moral, consoante se vêdas ementas abaixo transcritas:

Maus tratos aanimais de circo - Ação cautelar de busca e apreensão ­Requerimento daPromotoria da Comarca de Sumaré em favor de um hipopótamo e um chimpanzévítimas de maus tratos - Instalações inadequadas para os animais -Envio dessesbichos para o Parque Ecológico Municipal de Americana (proc. n. 1445/93, 3ªVara Cível de Sumaré).

Mortandade de peixes - Ação civil pública proposta pela Promotoria de Sorocaba contraindústria local - Redução do oxigênio da água provocada pela diminuição davazão nas barragens de usina hidrelétrica de responsabilidade da requerida-Indenização pleiteada em vista da conseqüente mortandade de peixes do rioSorocaba (proc. n. 2110/93, 5a Vara Cível de Sorocaba).

TV Animal - Ação civilpública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra rede emissora detelevisão que exibia imagens de maus tratos a animais, dentre as quais lutalivre entre caranguejos - A requerida, abstendo-se de fazê-lo passou a veicularcampanhas ecológicas - Acordo homologado - (proc. n. 89/00377540/7, da 19a Varada Justiça Federal).

Abate cruel - Matadouromunicipal que vinha abatendo gado a marretadas, método esse vedado por lei emrazão do sofrimento imposto ao animal - Ação civil pública proposta na comarcade São Bento do Sapucaí - Municipalidade condenada a adequar o matadouro àsespecificações modernas e a substituir o sistema arcaico de abate pelo métodocientífico-humanitário (proc. n. 284/92, Comarca de São Bento do Sapucaí).

Apreensão de navio - Inquéritocivil instaurado pela Promotoria de São Sebastião contra navio estrangeiro quederramou 20.000 litros de óleo nas águas litorâneas brasileiras, ocasionandosérios riscos à fauna ictiológica - Medida cautelar de Produção Antecipada deProvas para permitir imediato exame pericial na embarcação

                       - Navio retido noporto até a prestação de caução no valor de US$ 10 milhões, para garantir aindenização dos danos ambientais sofridos (proc. n. 429/91, Comarca de SãoSebastião).

                       Fechamento dezoológico - Ação Civil Públicainterposta pelo Ministério Público Estadual em favor de 30 animais da faunasilvestre aprisionados em condições cruéis

                       - Estabelecimentoparticular montado em desconformidade à lei - Ofensa ao decreto

                       n. 24.645/34 -pedido de fechamento do zôo com a reintegração dos bichos, na medida dopossível, ao seu habitat natural (proc. n. 218/88, Comarca deAparecida).

Crueldade em rodeio - Ação civil pública ajuizada pela Promotoria de Cravinhos a fimde impedir rodeio - Festa regional que envolve maus tratos e crueldade-Utilização de instrumentos e métodos que causam sofrimento aos animais ­Concedidaliminar para que os responsáveis pelo evento abstenham-se de usar sedém, esporasde formato pontiagudo ou cortantes e de sinos no pescoço dos animais, porque seconstituem em dolorosos meios de instigação à ira do bicho (proc. n. 937/95,Comarca de Cravinhos).

Passarinhada -Danos ao meioambiente causados em 'churrasco de confraternização' no município deEmbu - Captura e matança indevida de aproximadamente 5.000 aves da faunanacional, incluindo rolinhas, sabiás e tico­ticos , assadas em espetos - Açãode Responsabilidade Civil ajuizada pelo Ministério Público - Comprovação efetivado dano ecológico, que causou o extermínio dos pássaros - Réu condenado aindenizar o Estado (Apelação Cível n. 70.393-1, 5a Câmara do Tribunal deJustiça).

Matança em canil - Sacrifíciode cães apreendidos nas ruas - Utilização de método cruel consistente emchoques elétricos de 220 volts após os animais serem molhados

- Açãointerposta pela Promotoria de Três Corações/MG com o apoio do SociedadeTricordiana Protetora dos Animais - Termo de ajustamento de conduta aceito pelaMunicipalidade, que se conscientizou do erro (proc. n. 10216/95, 1a Vara daComarca de Três Corações).

Trio elétrico - Ação civilpública, com pedido de liminar, movida pela Promotoria de Justiça da comarca dePorto Seguro/BA, em face da exploração comercial e perversa de animais (jegues)para o divertimento humano - Bloco carnavalesco cujo carro do trio elétrico erapuxado, dia e noite, por jumento extasiado - Hipótese típica de abuso em animalde tração (proc. n. 535549/99, Vara Cível da comarca de Porto Seguro).

Verifica-se, diante desses casosconcretos, que a efetiva atuação da promotoria de Justiça pode, por viaoblíqua, evitar, interromper ou minimizar o sofrimento dos animais submetidosao jugo humano. Mesmo aquelas espécies da fauna doméstica que se destinam aoabate, como vacas, porcos ou galinhas, merecem tratamento condigno, nos termosda Lei n. 7.705/92. Não se permite mais, nos matadouros do Estado de São Paulo,sacrificar animais a marretadas, tampouco retalhá-los antes da completainsensibilização científica. A inobservância dos preceitos legais podeperfeitamente levar os infratores ao banco dos réus, por infração ao artigo 32da Lei dos Crimes Ambientais, sem prejuízo das medidas de ordem civil eadministrativa. É

o que ocorre,também, na hipótese de crueldade em animal de zoológico ou de circo. Oproprietário pode ser processado na esfera criminal (por delito de maus tratos)e responder, no âmbito cível, a ação ambiental (visando a obrigação de fazer,de não fazer e/ou reparatória). Pode também, em sede administrativa, sofrerbusca e apreensão, multa e ter seu estabelecimento interditado. Já aquele quese utiliza de animais em trabalhos excessivos ou superiores às suas forças,mediante castigos imoderados, é passível de enquadramento penal por abuso oumaus tratos. Dentre essas situações podemos relacionar o mau costume de algunscarroceiros em chicotear, sadicamente, animais de carga ou, então, daquelesprofissionais de canis que exorbitam na prática do adestramento.

Ainda naesfera da justiça comum há a questão envolvendo os chamados 'rodeios', ondecavalos e touros de montaria costumam ser submetidos a sevícias. Dentre ossubterfúgios utilizados para que esses animais saltem pela arena como sebravios fossem, podemos relacionar o sedém (cinta de couro ou corda de crinaque, comprimida ao abdômen do animal, faz com que ele pule e escoiceie emdesespero) e as esporas (instrumentos metálicos, de formato circular oupontiagudo, colocados na bota dos peões para estocar a montaria durante oespetáculo). E pensar que a Declaração Universal dos Direitos dos Animaisgarante ao animal o direito de 'não ser usado para divertimento dohomem', prescrevendo que 'a exibição em espetáculos é incompatível àdignidade do animal' (artigo 10); da mesma forma a Carta da Terra, nascidana ECO-92, ao dizer que devemos tratar todas as criaturas decentemente,protegendo-as da crueldade, do sofrimento e da matança desnecessária (artigo14). E o Brasil, vale repetir aqui, subscreveu esses diplomas morais-ecológicosao lado das principais Nações do mundo.

Não há comonegar que os animais utilizados nas arenas dos rodeios experimentam sensaçõesde angústia, medo, tormento e dor, sob as esporas dos montadores e em razão daforte compressão abdominal ocasionada pelo sedém. Trata-se, narealidade, de uma reação de causa e efeito, que faz o animal pular e escoicearna tentativa de livrar-se daquilo que lhe agride. Pouco importa seja esseinstrumento confeccionado em couro ou com material macio, eis que causa, de umaforma ou de outra, intensa dor ao animal, traduzindo-se em crueldade. Diga-se omesmo com relação às provas de laço e derrubada do boi, assim como a Vaquejadado nordeste, onde os animais destinados ao entretenimento humano muito padecemnas mãos de seus algozes, sofrendo na queda lesões que, às vezes, lhe acarretama própria morte.

O aparenteconflito de interesses difusos, na questão dos animais submetidos a espetáculospúblicos, surgiu em decorrência da tradicional conotação antropocêntrica dodireito brasileiro, que se funda em equivocada premissa. Dizer que a fauna podeser utilizada para finalidade cultural, esportiva ou recreativa, como na farrado boi, na caça amadorista ou nos rodeios, soa um contrasenso, até porque aprópria Constituição Federal mostra-se contrária a práticas que submetamanimais a crueldade (art. 225 § 1o , VII). Ora, a defesa do meio ambiente (neleincluído os animais), longe de significar apenas a garantia de saudávelqualidade de vida, é também princípio geral da atividade econômica (art. 170,VI, da CF), o que, segundo o magistério do festejado José Afonso da Silva,possibilita a compreensão de que o capitalismo concebido há de humanizar-se.De fato, não se pode aceitar a tortura institucionalizada de animais com basena supremacia do poder econômico, nos costumes desvirtuados ou no argumento deque sua prática se justifica em prol do divertimento público ou então paraminimizar o problema do desemprego. Esse ilustre constitucionalista, aliás, naedição mais recente de seu consagrado 'Curso de Direito ConstitucionalPositivo', já admite o surgimento de uma corrente doutrinária que permitereconhecer a existência do chamado direito dos animais.

Outro assuntopolêmico já enfrentado pelos juristas diz respeito às famigeradas rinhas degalo, onde apostadores inescrupulosos promovem, para deleite próprio ou alheio,um espetáculo mortal. Os galistas argumentam que essa prática, de origemmilenar, nada mais é do que um esporte já incorporado aos costumes brasileiros,no qual os animais combatentes agem por instintos atávicos. Esquecem, contudo,que os galos são provocados - indiretamente - pelo próprio homem, que os colocana rinha para uma luta de vida ou morte. Trata-se, sim, de crime de maustratos, porque envolve atos de extrema violência contra os animais. Vale dizerque os galos de briga, que desde cedo experimentam a dor física - suas orelhas,cristas e barbelas são cortadas sem emprego de anestesia - têm o bico e asesporas reforçadas com aço inoxidável, de modo que a luta não termina enquantoum deles não tombar mortalmente ferido.

A Justiçaestadual já foi acionada, inúmeras vezes, para julgar atentados contra animaisdomésticos. Pode-se conferir, na jurisprudência que se segue, hipóteses em quehouve a condenação dos réus:

Crueldade contra animal - Envenenamento de cão - Caracteriza a contravenção doartigo 64 da competente lei, ministrar substância venenosa a animal inofensivo,causando-lhe sofrimento e morte (Julgados do TACrim , 55/126).

Crueldade contra animal -Indivíduos que, a golpes de enxada, quebram a perna de equino, abandonando-o sem socorro - Protege a lei os animais não só por sentimento depiedade como também para educar o espírito humano, a fim de evitar que aprática de atos de crueldade possa transformar os homens em seres insensíveisao sofrimento alheio, tornando-os também cruéis para com os semelhantes (RT295/343).

Crueldade contra animal - Morte de gato por queimaduras - Pratica acontravenção do artigo 64 da Lei das Contravenções Penais o agente que, apósjogar querosene em um gato, atea-lhe fogo, causando grande sofrimento ao animal(RJD TACrim, 2/74).

Briga depássaros - A exploração de jogo de azar, sob a forma de 'briga depássaros', constitui - também - crueldade contra animais (RT 500/339).

Crueldade contra animal - Abate de cachorro a tiros - Pratica ato contrário aossentimentos de humanidade aquele que provoca sofrimentos desnecessários einjustificáveis a um cão, fisgando-o por intermédio de um anzol para, emseguida, abatê-lo a tiros (RT 176/94).

Crueldade -Caracterização - Para que se configure a hipótese do artigo 64 da Leidas Contravenções Penais não há necessidade da reiteração de atos de crueldadequando se trata de sevícia contra animal, bastando um só ato (RT 591/358).

Crueldade contra animal - Espancamento de égua desobediente - Agente que espanca cruelmenteuma égua em face do comportamento anômalo do animal -Utilizando-se de umrebenque, o acusado provocou sérias lesões na cabeça, na barriga e nas ancas doeqüino, causando-lhe grande sofrimento (TACrim, Apelação 941.013-2, Lins).

Briga de galo - A briga degalos, embora para os galistas constitua um esporte, é evidentemente um ato decrueldade para com os animais, isto porque essas aves, quando levadas àsrinhas, enfrentam-se em duelo mortal, sangrando-se, cegando-se e brigando atéque uma delas caia prostrada ao chão e mortalmente ferida (RT 302/448).

Emboraprotegidos por legislação um pouco mais rigorosa, os animais selvagensenfrentam dramas ainda maiores. Caçadores, coureiros, contrabandistas ereceptadores já levaram, no Brasil, algumas espécies nativas ao rol dos bichosameaçados e extinção. Ninguém ignora que, apesar de proibido, o tráfico deanimais da fauna nacional ocorre com relativa facilidade em certas regiões brasileiras.Tartarugas, araras e até macacos, por exemplo, costumam ser oferecidosostensivamente às margens da rodovia Rio-Bahia e nos mercadões do Nordeste. Nopantanal matogrossense, apesar do policiamento, os caçadores de jacarécontinuam destemidos. Pior quando o animal recém-capturado é remetido aoExterior, via aérea, seja por rotas alternativas (envolvendo determinadospaíses sul-americanos não adeptos da Cites, da qual o Brasil faz parte), sejaem vôos comerciais (onde a maioria dos bichos despachados como mercadorias, emencomendas camufladas, chega sem vida ao destino).

Oportunolembrar, destarte, que a única modalidade de caça proibida no Brasil é aprofissional, conforme disposição contida no artigo 2o da Lei n. 5.197/67.Permite-se a caça de controle (destruição de animais considerados nocivos àagricultura ou à saúde pública), a caça de subsistência (perpetrada pelo agenteem estado de necessidade, para saciar a fome) e a caça científica (mediantelicença especial concedida a cientistas e pesquisadores). Já a caça esportivaou amadorista está regulamentada apenas no Estado do Rio Grande do Sul, nostermos da Portaria 35/N, de 3.4.92, do Ibama, soando paradoxal que sua pretensafinalidade recreativa possa prevalecer diante do sofrimento e da morte dosanimais perseguidos.

A mais gravedentre elas, sem dúvida, é a caça profissional, que movimenta em nosso País US$1,5 bilhão ao ano. A mera existência de lei penal repressiva não implica,necessariamente, no fim do tráfico de animais silvestres. Talvez a melhorsolução para o problema seja combater o mal pela raiz. Algo muito simples. Apartir do momento em que as pessoas não mais adquirirem animais exóticos ouoriundos da selva, o ciclo do contrabando será interrompido. É a famosa lei daoferta e da procura: uma não sobrevive sem a outra.

Ajurisprudência federal pode ilustrar melhor o assunto:

Contrabando de animais silvestres - Agente estrangeiro surpreendido tentando embarcar 39espécies da fauna silvestre brasileira, adquiridos em feira - Tratando-se decrime inafiançável e praticado por alienígena que pretende ausentar-se do País,descabe a concessão de ordem de habeas-corpus para relaxar a prisão(Habeas-Corpus 0201562, Tribunal Regional Federal).

Incêndio e milha oceânica, criadouro natural de aves - Destruição de 95% da flora e dafauna existentes - Palito de fósforo atirado à mata - Condenação por crimeculposo - Efetivo dano ao patrimônio da União (Apelação 0412086, TRF).

Caça e abate de tatus - Crimecontra a fauna - A caça de tatu, animal nativo, constitui crime contra a fauna,pois a proibição tem sido divulgada há anos em todo

o territórionacional (Ap. 0408104, TRF).

Caça profissional -Crime contraa fauna - Comprovado que o apelante havia contratado mão-de-obra para abaterjacarés no Pantanal, bem como fornecido apetrechos para esse fim - Apreensão degrande quantidade de couro de jacaré destinada ao comércio - Recurso improvido(Ap. 03039055, TRF).

Apreensão depeles de animais silvestres - Crime contra a fauna - A apreensão , em poder doacusado, de 4.490 peles de diferentes animais da fauna silvestre brasileiradenota, presumivelmente, finalidade comercial - Condenação do réu (Ap. 0111736,TRF).

Quanto à faunaalada, a captura e o aprisionamento de pássaros canoros pode caracterizar crimeambiental, proteção essa que se estende, atualmente, às aves em rota migratória(importante salientar que, conforme as estatísticas oficiais, das 9.700 avescatalogadas no mundo, 1.600 sobrevoam o território brasileiro). Os criadouros regulamentadose a origem estrangeira da maioria dos pássaros destinados ao comércio acabam setornando, na prática, a forma legal para se decretar a prisão perpétua dessasfrágeis criaturas aladas, as quais padecem - quase sempre em minúsculo cárcere-por um crime que não cometeram.

As aves queaqui gorjeiam têm sido, também, objeto de apreciação judicial:

Crime contra afauna - Infringe o art. 3o da Lei de Proteção à Fauna aquele que mantémem cativeiro, para o fim de comércio, centenas de pássaros canoros nacionais(RT 542/370).

Crime contra afauna - Comercialização de pássaros silvestres - Comprovado que o agenteconduzia, em seu veículo, grande quantidade de pássaros da fauna brasileira, emextinção, com finalidade comercial (Apelação 0213472, Tribunal RegionalFederal).

Crime contra afauna - Caracterização - O ato de oferecer à venda pássaros que não sãoprovenientes de criadouro legalizado constitui infração à Lei de Proteção àFauna (Ap. 0414666, TRF).

Crime contra a fauna - Apreensãode canários-da-terra mantidos em gaiola -Destinação comercial não comprovada -Indispensável para caracterizar o crime a finalidade comercial das avesapreendidas, o que não restou demonstrado nos autos

- Recursoministerial improvido (Ap. 0134252, TRF).

Crime contra afauna - Apreensão de pássaros - Configura crime a captura de pássarosda fauna silvestre mediante utilização de visgo (massa gelatinosa que se passanos galhos das árvores e prende os passarinhos) - Hipótese de condenação (Ap.0131946, TRF).

Crime contra afauna - Tráfico de aves consistente na apanha e venda de pássaros denossa fauna silvestre -O apelante, por trazer pássaros (canários-chapinha)dentro de um caixote com fundo falso e escondido num saco, demonstrou suaconsciência do ilícito penal - Crime caracterizado (Ap. 0105870, TRF).

4. DIALÉTICA DA COMPAIXÃO

É certo que opensamento dos sofistas e dos filósofos de Atenas, correlato à concepçãobíblica de mundo, incorporou-se à educação européia da Idade Média até meadosdo século XVIII, repercutindo sob diversas formas no curso da história. Se deum lado essa influência permitiu o surgimento do positivismo jurídico no'Contrato Social', de Thomas Hobbes, na visão privatista da'Teoria do Governo', de John Locke, no paradigma da dominação deFrancis Bacon e no mecanicismo científico de René Descartes, outros notáveispensadores - em contrapartida ­assumiram postura diferenciada na sondagem dacondição humana e seu relacionamento com os demais seres vivos. Na antigüidadegrega Pitágoras, vegetariano, já acreditava na unidade do universo e, portanto,na interdependência de todas as criaturas do planeta. São Francisco de Assis,autor do belíssimo 'Cântico das Criaturas', atingiu tamanho grau dehumildade e despojamento a ponto de associar-se em fraternal comunhão aosanimais. O filósofo Montaigne, em um de seus ensaios críticos, escreveu que'aos homens devemos justiça, mas aos animais devemos solicitude ebenevolência'. Fê-lo por acreditar que os bichos possuem leis naturais porqueestão unidos pelo sentimento ao passo que os seres humanos possuem leispositivas porque unidos pelo apenas conhecimento. Vocábulo este, contudo, quenão se confunde com sabedoria. Outro filósofo que trilhou nesse caminho foiJean-Jacques Rousseau, ao atribuir à sociedade a origem de todos os males. Emsua derradeira obra, 'Devaneios de um Caminhante Solitário', Rousseau­acreditando que a sociedade corrompe o homem - entrega-se a uma atitudebucólica e contemplativa ao fundir-se, misticamente, com a natureza, em longospasseios pela solidão do campo.

Interessanteressaltar que a subjetividade é sempre o ponto de partida, tanto noracionalismo cartesiano, como no pensamento de Rousseau. Em oposição à éticamecanicista de Descartes, onde a razão se lança na aventura do conhecimentocientífico, a interioridade de Rousseau se traduz no próprio sentir. E essevolver a si mesmo, medida da interioridade do homem, é o que se pode chamar delegítima natureza. Algo que se opõe à visão enciclopedista e mecânica e friadaqueles que enxergavam a essência das coisas pelos olhos da ciência, comoproduto de uma cultura dominante. Em uma das pungentes passagens daquele livro,Rousseau lamenta a corriqueira prática da experimentação animal : 'Comoobservar, dissecar, estudar, conhecer os pássaros no ar, os peixes na água, osquadrúpedes mais leves que o vento, mais fortes que o homem e que não estãomais dispostos a se oferecer às minhas pesquisas do que eu a correr atrás delespara submetê-los pela força?... Não possuo nem o gosto nem os meios demantê-los cativos, nem a agilidade necessária para segui-los em seu andar,quando em liberdade. Será, portanto, necessário estudá-los mortos, rasgá-los,desossá-los, escavar à vontade suas entranhas palpitantes?'. Essareflexão acerca da crueldade cometida em nome da ciência e o desejo de selançar ao infinito permitiu ao autor um mergulho profundo na própriainterioridade humana e descobrir, assim, sua verdade submersa.

Há que se questionar, portanto, se nocampo do discurso filosófico existe aquilo que se pode chamar 'ética dosanimais' ou mesmo 'direito dos animais', haja vista a clássicaconcepção de que apenas o ser humano - capaz de assumir direitos e obrigações -pode figurar como sujeito do direitos. Esse entendimento, na realidade, pressupõea existência de uma diferença qualitativa entre o homem e o animal, de modo aautorizar a preponderância daquele pelo poder, pela força e, sobretudo, pelacapacidade maior de raciocínio. Tudo leva a crer quem embora algunsconceituados juristas já admitam a existência de um direito especial deproteção aos animais, a idéia de que não apenas o homem podem ser sujeitos dedireitos vem ganhando força em vista do paradigma ambiental, de naturezaholística. A idéia de considerar o animal não apenas bem móvel ou coisa, masser sensível, foi objeto de um original ensaio jurídico publicados por RenéDemogue, na França, em 1909. Na Itália, também no início do século passado,merecem distinção a obra de Piero Martinetti ('Piedade pelosanimais', de 1904), que contesta de maneira sublime as teorias que negamalma, sentimento, sensibilidade e inteligência aos animais, e, pouco maistarde, a de Cesare Goretti ('O animal como sujeito de direito', de1928), que assim se pronunciou sobre o tema: 'Quem maltrata um animaldesconhece a dor universal que há em cada ser vivente; ofende um direito queexiste ainda que o animal não tenha os meios de fazê-lo valer. O exercício dodireito não é portanto uma condição

essencial parasua existência. Se pensarmos que existe uma psicologia animal, se pensarmos queo animal é um ser vivente capaz de sofrer e de pelo menos relacionar a causa aoefeito; que é dotado de uma natureza que, somente por grau, e não pelaessência, difere da nossa, veremos que é evidente que tanto ao senso moralquanto à razão repugnam a idéia do animal como simples objeto'. Idéias essasque remontam, por afinidade, à filosofia de Arthur Shopenhauer, que, ao colocara compaixão como fundamento da moral, fez o elogio do amor universal à naturezae aos animais.

A essênciaética relacionada à tese de que os animais podem ser sujeitos de direitos nãose restringe à capacidade de pensar ou de falar, mas à capacidade de sofrer.Tema esse brilhantemente desenvolvido pelo professor australiano Peter Singer,autor do polêmico livro 'Animal Liberation' (Libertação Animal), quepropôs -para tanto - a expansão dos horizontes morais do homem: 'Hábito.Esta é a barreira final que o movimento de libertação animal enfrenta. Hábitosnão só de alimentação mas também de pensamento e linguagem devem ser desafiadose modificados. Hábitos de pensamento nos levam a considerar descrições decrueldade contra animais como algo emocional, ou então consideram o problematão banal em comparação com os problemas dos seres humanos, que nenhuma pessoasensata poderia gastar seu tempo e atenção com ele. Isso também é umpreconceito -como poderá alguém saber que um problema é banal enquanto nãoempregar seu tempo para avaliar sua extensão?'. Inegável, entretanto,que a obra de Singer representou um divisor de águas na causa protetiva dosanimais, ao permitir a reflexão mais aprofundada do tema, revelando o queexiste por trás das atitudes e comportamentos humanos em relação às criaturassubjugadas. Expôs, ainda, a face oculta da experimentação animal, denunciando aautêntica tortura praticada entre quatro paredes, sob os auspícios dadeusa-ciência. E teve a coragem de dizer que, cessando de criar e matar animaispara consumo, o homem poderia cultivar tanto alimento que, devidamentedistribuído, acabaria com a fome do planeta. Porque Libertação Animal, concluiuo filósofo, significa Libertação Humana também.

Mas, voltandoà atual realidade brasileira, apesar da promulgação do texto legislativo daPolítica Nacional de Educação Ambiental (Lei federal n. 9.795/99) -carta essaque, somada à Lei Ambiental e respectiva regulamentação, traz renovadasesperanças para a defesa dos animais - ainda há muito que se fazer para mudar amentalidade daqueles que se esquecem que a natureza é um todo vivo e nãoum mero conjunto de recursos. Ou daqueles que propagam a necessidade dapreservação do meio ambiente para as gerações presentes e futuras - homens,evidentemente - com inegável interesse utilitarista. Do mesmo modo, há que sequestionar a própria expressão 'desenvolvimento sustentável' diantede sua manifesta ambigüidade, eis que pode perfeitamente servir a objetivoscontraditórios ou mesmo espúrios. O cenário em que se projeta nossa fauna -como um todo - é extremamente desolador, porque comprometido com interessesoutros que não aqueles verdadeiramente relacionados ao respeito ou àpreservação. Apesar da existência, atualmente, de tantas leis proibitivas decomportamentos cruéis, os bichos continuam padecendo nas arenas públicas, nasfazendas industriais, nas matas cada vez menores , nas águas poluídas dos rios,nos grilhões e engradados, nas mesas dos laboratórios, nos galpões mortuáriosou nos cubículos insalubres em que vivem confinados, como se a compaixão pelosanimais - diante da realidade brasileira - soasse pueril e supérflua. Já asleis permissivas de comportamentos cruéis, em contrapartida, funcionam comosalvo-conduto às práticas imorais e antiéticas que incentivam, como se podeconstatar nas leis que autorizam os rodeios e a jugulação cruenta, ambas de SãoPaulo, ou, então, na lei estadual catarinense que admite a prática da farra doboi em locais cercados (mangueirões). Ainda que se saiba da necessidadeda lei como instrumento hábil a recriminar e/ou coibir condutas moralmentereprováveis, difícil negar que a força coercitiva nem sempre é capaz demodificar as ações humanas. Nesse ponto surge o papel da educação: fomentar amudança de posturas. Vânia Rall Daró, refletindo sobre esse tema, ponderou que'as leis podem inibir certos comportamentos; no entanto, elas nãomodificam necessariamente mentalidades, e é por isso que o equilíbrio socialobtido por meio delas é frágil. Em outras palavras: a verdadeira modificação decomportamentos e de mentalidades decorre da educação, e não da força da lei.Mudanças essas que começam nas estantes das livrarias, e não nas publicações deleis nos diários oficiais'. Na impossibilidade, entretanto, de se alcançara sociedade perfeita onde a harmonia entre os homens e o respeito aos animaisfosse uma coisa natural - algo que não se vê nem mesmo na 'Utopia' deThomas Morus - há que se recorrer às leis e, sem prejuízo delas, a um novomodelo educacional.. Cabe aqui indagar, portanto, que tipo de educaçãoambiental interessa ao Brasil, aquela voltada à política conservacionista paraa garantia dos chamados recursos naturais ou a outra, menos retórica, queensine o homem a respeitar o caráter sagrado da vida.

Cabe aoMinistério Público da União e dos Estados, seja na propositura de ações penais,seja na defesa dos interesses indisponíveis da sociedade, exercer, em suaplenitude, a tutela jurídica da fauna. E contribuir, com os frutos dessetrabalho, à educação ambiental que o País tanto necessita. Quanto mais pessoasse conscientizarem de que os bichos domésticos, as aves, os répteis, os peixes,os moluscos, as feras e os insetos fazem parte de um único e fascinanteecossistema e que possuem o direito a viver sem sofrimentos, cada vez mais nosaproximaremos do tão decantado mundo melhor. Nestes tempos de perplexidade,onde a engenharia genética começa a produzir clones de seres vivos, faz-se derigor uma atitude ética perante a natureza. É aquilo que costuma dizer aambientalista Edna Cardozo Dias, ao enfatizar que a harmonia social plenasomente será alcançada com a comunhão entre homens, plantas e bichos. Essainteração cósmica do homem com tudo que lhe cerca, permitindo a ele aprender,com humildade, que cada criatura viva é apenas uma pequena peça na mágicaengrenagem do Universo, parece ser o melhor caminho para o nascimento de umasociedade pacífica, mais livre e menos injusta.

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CONCLUSÕES ARTICULADAS:

1                    A relação homem-animal, caracterizadainvariavelmente pelo signo da crueldade, traz em si um sangrento histórico dedomínio e de subjugação. Isso decorre, em parte, da dogmática judaico-cristã edo mecanicismo científico que inspirou o modelo antropocêntrico no mundoocidental, onde os animais são considerados 'recursos','coisas', 'semoventes' ou, simplemente, criaturasdestinadas a servir ao homem.

2                   Embora surgidas apenasno último século, as leis brasileiras de proteção aos animais permitem aefetiva aplicabilidade daquilo a que se propõem. Com o cancelamento da Súmula91 do STJ a competência nos crimes contra a fauna passou a ser, em regra, daJustiça Estadual. O que não impede o conjugação de esforços entre o MP federale estadual na busca de um objetivo comum.

  3.               O MinistérioPúblico se firmou como órgão mais capacitado à defesa ambiental no País, o quese comprova por seu avanço institucional ocorrido nos últimos vinte anos econsagrado na própria Constituição Federal. A desoladora situação da fauna  brasileira, tantasvezes submetida a atentados, abusos e maus-tratos, pode ser revertida se o MPincluir a tutela dos animais em seus planos de atuação.

4          Quinhentos anos passados desde oDescobrimento, muitos brasileiros ainda não se deram conta de que a proteçãoaos animais não representa apenas uma atitude sentimental, mas de respeito àvida e à própria sociedade. A verdadeira educação ambiental implica em uma mudançade mentalidade e de valores, permitindo ao homem refletir, sem preconceitos,sobre o caráter sagrado da vida.

Nota

1) 4º. PROMOTOR DE JUSTIÇA DE SÃOJOSÉ DOS CAMPOS 

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