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Alma de outro mundo? Conheça as lendas que envolvem o alma-de-gato

Crônica do jornalista Ciro Porto reflete sobre o mistério decorrente do desconhecimento.

Por Ciro Porto, Terra da Gente

Alma-de-gato se destaca pela plumagem vistosa, olhos avermelhados e tamanho avantajado — Foto: Edson Endrigo/Acervo Pessoal

Quando criança, as primeiras aulas sobre o mundo das aves recebi de José Rocha, um senhor aposentado, primo de minha mãe, conhecido como Zé Passarinheiro. Os tempos eram outros. Ter aves em gaiolas era muito comum. Zé colecionava pelo menos uma centena delas. Tinha de tudo: pintassilgos, curiós, patativas, etc.

Além da passarada, Zé tinha muita história para contar, e um pequeno ouvinte disposto a aprender e também a acreditar em muitas fantasias. Lembro-me bem, por exemplo, quando me disse que o trinca-ferro (Saltator similis) tinha esse nome porque atacava caçadores com bicadas poderosas.

Entre todas as “verdades” que Zé me contava, a mais misteriosa, sem sombra de dúvidas, era sobre a alma-de-gato (Piaya cayana). Ele dizia que ela era dificilmente avistada e que nunca ninguém havia encontrado seu ninho. Bem, para quem já se interessava pelas aves, uma dose de mistério serviu apenas para aumentar ainda mais o interesse. Cheguei a procurar, mas levei uns quatro a cinco anos para ver uma. E de relance!

O alma-de-gato ocorre em todo o Brasil e tem uma vasta distribuição na América Latina. — Foto: Mateus da Silva/Acervo Pessoal

Na Amazônia nossa alma-de-gato é conhecida como chincoã ou ainda tincoã. E, pasmem, esses nomes significam pássaro-feiticeiro. Segundo uma lenda, seu canto é fatídico, basta escutar para estar com os dias contados. A ave é também conhecida como alma-perdida, alma-de-caboclo e uirapagé. São muitos mistérios por trás de uma ave só, não é mesmo?

Vamos então aos fatos. Alma-de-gato é uma ave vistosa, mede praticamente meio metro, sendo sua cauda comprida responsável por dois terços desse tamanho todo. É carnívora. Alimenta-se de gafanhotos, lagartas – entre elas, as taturanas – aranhas, lagartixas e, ainda, camundongos. Daí vem sua importância no equilíbrio da vida, ajudando a controlar o excesso de populações de lagartas e gafanhotos, por exemplo, evitando que se tornem pragas e causem danos às árvores nativas e culturas agrícolas.

Alma-de-gato se alimenta desde frutos e lagartas a pequenos mamíferos — Foto: Rudimar Narciso Cipriani

Quanto a família, você já viu um daqueles antigos relógios de parede com uma portinha que, a cada hora cheia, se abre um passarinho cantando: cuco, cuco, cuco? Pois é, nossa ave misteriosa é da família dos cucos (Cuculidae), parente do anu-branco, do anu-preto, dos diversos papa-lagartas e também do saci. Êpa, melhor parar por aqui, olha o mistério aparecendo de novo.

Quase sempre quando não conhecemos ou compreendemos algo, isso se torna um mistério. Acredito que a fama dessa ave seja produto, justamente, do desconhecimento. Imagine um caboclo andando pela mata. De repente, alguma coisa se afasta rapidamente pelos galhos de uma árvore e desaparece.

Se o caboclo conseguir enxergar apenas a cauda, poderá imaginar que foi um gato. Se estiver sozinho e se assustar, então, perfeito: alma de gato. Se for muito medroso, uma alma perdida ou alma de caboclo. Agora imagine um índio observando uma ave dessas comendo taturanas peludas, daquelas que queimam bastante. Só mesmo uma ave feiticeira teria tanto poder, não é mesmo?

Alma-de-gato também se destaca pelos olhos de intenso avermelhado — Foto: Wilamir Branco/Arquivo pessoal

Na primeira vez que vi uma alma-de-gato só consegui enxergar um vulto com um rabo comprido, correndo pelos galhos de uma mata à beira do Rio Atibaia, no interior de São Paulo. Por essa agilidade – e, claro, também devido ao tamanho da cauda – os americanos a chamam de squirrel cuckoo, ou seja, cuco esquilo. Aliás, a capacidade de saltar e correr pelos galhos deve-se ao fato de a alma-de-gato ter pés zigodáctilos, ou seja, com dois dedos para frente e dois para trás, semelhantes aos dos pica-paus.

O Zé Passarinheiro e o ninho da ave nunca encontrado dariam uma história da carochinha e tanto. Na verdade, vários ninhos de alma-de-gato já foram estudados, se bem que ainda há muito para se descobrir sobre o comportamento de reprodução da espécie. Há quem afirme que, a exemplo do cuco europeu, nossa alma-de-gato costume pôr ovos para serem chocados por outras aves. Outros pesquisadores discordam.

Alma-de-gato quando jovem tem a plumagem de adulto e tamanho de filhote — Foto: Jaílson Souza

Uma outra versão sobre a origem do nome dessa ave estaria associada ao som emitido por ela, semelhante ao miar de um gato. Eu, particularmente, nunca ouvi isso, nem nas matas, nem nas centenas gravações de seu canto. No entanto, não descarto a possibilidade já que nossa ave misteriosa é capaz de algumas façanhas como imitar outras espécies, entre elas o bem-te-vi.

De uma coisa tenho certeza, essa ave é benfeitora das árvores e significa a morte apenas para as lagartas e outros pequenos animais. É alma de outro mundo, com certeza: o mundo das aves.

Alma-de-gato vive em matas ciliares e secundárias, capoeiras, parques e bairros arborizados (até mesmo de grandes cidades brasileiras) — Foto: Rudimar Narciso Cipriani



Fonte: G1 - Publicado neste site em 10/09/2020

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